terça-feira, 13 de março de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBE O PORTO - XXVII

9.27 - Ramalho Ortigão em AS FARPAS - V, Fidalgos no Porto, Visita real, Portuense gloria-se de ser Tripeiro, O Porto aburguesou-se.

… e Palácio dos Terenas

Fidalgos havia seis, unicamente: o da Bandeirinha, o da Rua da Fábrica, o de Trás da Sé, o Cirne do Poço das Patas, o Pamplona de Santo Ovídio e o Terena da Torre da Marca. Quase todos eles tinham velhas seges bamboleantes em altos suspensórios de couro e criados de farda, parecidos com os do bispo, e tendo as cores das respetivas casas nas golas, nos canhões e nos vivos da libré arcaica, cheirando a mofo e a azebre.
A cidade opunha ao prestígio bolorento dos seus velhos nobres a glória constitucional dos seus bravos do Mindelo, dos seus voluntários da Rainha, dos seus soldados do batalhão da Carta, simples negociantes enriquecidos que tinham andado com o imperador de patrona nos rins e escopeta ao ombro, enfarruscando a cara com o fumo das escorvas, de reduto em reduto, do Pasteleiro para as Antas, das Antas para o Bonfim, do Bonfim para a serra do Pilar, em todo o circuito das trincheiras, no tempo do sítio.


Rua dos Clérigos -visita D. Manuel II - 23-11-1908 - foto Joshua Benoliel

Quando o príncipe reinante e a sua augusta família iam às províncias do Norte, o Porto recebia-os de azul e branco, num grande rasgo de júbilo sublinhadamente plebeu, que entocava a nobreza de pura humilhação perante as magnificências da burguesia dinheirosa e bizarra. Os moradores das ruas por onde tinha de passar o cortejo rivalizavam de ardor nas manifestações do público regozijo: colchas e bandeiras nas janelas, girândolas de foguetes, palanques de música, luminárias, loas e arcos de triunfo em lona pintada, do alto dos quais choviam pétalas de rosas sobre os reais hóspedes.
Ao fundo da Rua de S. João, em frente da Ribeira, armava-se um pavilhão ornado de bambolins das cores constitucionais, e nesse estrado, a que subia a família real e os vereadores da municipalidade portuense, de espadim e capa, bacalhau na camisa e tricorne guarnecido de arminhos, se procedia à cerimónia da vassalagem prestada ao rei pelos representantes da Cidade Invicta. O presidente da Câmara apresentava ao soberano sobre uma almofada de veludo duas enormes chaves de cartão dourado, a que pelo mais arrojado dos tropos Sua Excelência chamava no seu discurso as chaves deste inexpugnável baluarte da liberdade! O monarca retorquia que as chaves do dito baluarte se não podiam achar em mais fiéis e leais mãos que a do orador preopinante. 


E a Câmara, com as suas chaves de papelão sobre o coxim de veludo, retomava as competentes seges e seguia, atrás da real família e do seu respetivo séquito, até à igreja da Lapa, a orar em frente do sarcófago em que se acha depositado o coração de Pedro.


Arco na Rua de Santo António nas festas de verão em 1908

Alguns dos arcos triunfais, representando castelos roqueiros coroados de figuras alegóricas, tinham inscrições epigráficas em verso. Num desses arcos, na Rua das Flores, lembro-me que se lia, de uma vez, esta conceituosa quadra:

Pela Carta e por ti, rainha cara,
O Porto pelejou luta de morte;
Pela Carta e por ti, com lança em punho,
O Porto velará potente e forte.

Esse era o tipo consagrado de todas as manifestações do júbilo portuense: um cumprimento à pessoa real, envolto sempre num elogio indireto ao próprio Porto, e destinado a fazer sentir que a comissão dos festejos, a qual pagou pro rata as ripas, a lona, a cola e as luminárias dos arcos, é a mesma que noutra ocasião aparafusou a coroa na testa augusta do Príncipe. E, se algum parafuso cair à testa referida, o mesmo Porto lá continua a estar, potente e forte, de lança em punho, para o atarraxar outra vez! E não se ensaia para isso ... É zumba, bumba, catabumba! Para rainha e Carta, para liberal constituição e trono, aqui mora o Faz-Tudo! Solda, gruda, parafusa, martela, arrebita, bota abaixo, reconstitui, engonça, retesa, dá corda, regula, acerta e garante — sempre de lança em punho, feito de pedra, velando potente na fachada dos Paços do Concelho à Praça Nova, por cima da arrecadação das luminárias e das chaves do baluarte feitas de pasta pelo Alba dourador da Rua de Santo António.


No fundo das suas convicções políticas e sociais o portuense era verdadeiramente patuleia. Detestava instintivamente a corte, a nobreza, a capital do reino. Gloriava-se de ser tripeiro e articulava esta palavra rijamente, fazendo-se vibrar com explosão, à boca cheia, como se a pronunciasse com três pp. O alfacinha figurava-se-lhe um ser abjeto, esfaimado e pedinchão, ocioso e tísico, e a alfacinha uma delambida, de cuia à banda, cuspinhenta e desolhada, namorando os amanuenses das secretarias e os alferes do exército, e recitando poesias ao piano, com a barriga a dar horas e as meias rotas nos revesilhos dos calcanhares e das biqueiras. Ah! boa roca à cinta e bom côvado pelas costas! O Governo uma corja! E os pelintras dos deputados, tão bons uns como os outros! — Tal era a opinião sintética, geral na Rua das Flores e na Calçada dos Clérigos há vinte e cinco anos.
Hoje, transformação completa! Os burgueses mais opiniáticos, mais indómitos e mais cabeçudos docilizaram-se com uma facilidade memorável depois de ligados a Lisboa pelo caminho-de-ferro e pela intimidade correlativa da intriga política e da chicana partidária. Os patrões, juntamente com partido político, botaram bigode, e os marçanos botaram gravata. Desapareceram os venerandos capotes bandados de veludo, de ir à desobriga e ao Senhor, e desapareceram as belas mantilhas de coca, feitas de lapim ou de sarja de Trás-os-Montes. Vulgarizou-se o jogo da Bolsa e a lotaria. O número dos fidalgos, com mais ou menos exercício no Paço, elevou-se rapidamente de seis a seis mil. Com a deslocação do antigo eixo do negócio tradicional, ramerraneiro, cauto, economizador, estreitamente e lentamente espremido, atrás do balcão à luz da vela de sebo ou do candeeiro de três bicos, ou de feira em feira atrás da récua dos machos, de Viseu para Vila Real, de Vila Real para Penafiel, quadruplicaram ou quintuplicaram as falências. A cidade encheu-se portentosamente de viscondes e de casas de empréstimos sobre penhores.


Medalha comemorativa da inauguração do monumento a D. Pedro IV

Quando o rei vem, já se não procede à cerimónia da entrega das chaves do baluarte. O antigo Palácio das Carrancas, à Torre da Marca, pertence agora à Coroa, como o Palácio da Ajuda. O Porto enfim cessou de ser província. É segunda capital (segunda por ordem cronológica, bem entendido!) e a sua alta burguesia constitui para a corte uma espécie de casa filial, com as mesmas fazendas, somente com melhor sortido e mais barato. Em vez de levantarem arcos de triunfo com alegorias e versos patrióticos, os próceres do comércio vão dançar a palácio. Com o monarca dentro dos seus muros, o bom e antigo burgo, tão cioso outrora dos foros plebeus dos seus mercadores e dos seus mesteirais, converte-se num jardim zoológico de cortesãos, num seminário de áulicos, num Versalhes de improviso.


Professor Daniel Serrão com o hábito de mesário da Lapa

Os ferrões dos guarda-sóis das suas mercês, raspando pelas lajes acima da Rua dos Carmelitas, adquirem o tilintar aristocrático de finas espadas de corte. Nas lustrosas e espalmadas sapatetas dos mesários da Lapa e dos irmãos terceiros de S. Francisco parece quererem espigar os tacões encarnados dos galantes marqueses contemporâneos da Dubarry ou de Marie Antoinette. E em todas as línguas que se deitam de fora para lamber dedos polegares, ajudando a calçar as luvas brancas pelo Largo dos Lóios, como que se vê palpitar o madrigal subtil dos roués perfumado pela pastilha almiscarada dos mignons. É o Trianon que temos diante dos nossos olhos ou é o edifício da Bolsa?... É o Lago de Neptuno aquilo ou é o chafariz de Vilaparda? . .. Estamos no Parc-aux-Cerfs ou estamos na Ramada Alta? .. Ninguém o saberia distinguir. Pelo que dou os meus parabéns à Invicta Cidade. Unicamente receio que, quanto mais ela intervenha na corte e na política pela amenidade palaciana e pela domesticação partidária na sua qualidade de segunda capital, menos venha a preponderar como província nessa moralizadora influência em que o simples trabalho obscuro, persistente e honrado se contrapõe para a riqueza e para a prosperidade dos Estados Unidos à inquietação loquaz e estéril dos burocratas e dos bacharéis.» 

Sem comentários:

Enviar um comentário