segunda-feira, 30 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXVII

9.37 -  "Pela noite -Indagações Rui Moreira", Passeio noturno de Rui Moreira, O Porto visto por Richard Zimler


Pela noite -Indagações Rui Moreira"
No Público- Local de hoje (14 de Maio 2006)

«Passeei à noite pela Baixa. Abandonei o carro na Rua do Ateneu,


na esquina onde havia o mural do "preto da Casa Africana", carregado de caixas de chapéus, e admirei a fachada iluminada do silencioso Rivoli. Parei na D. João I, com os seus corcéis recortando a fachada listada do Palácio que foi Atlântico. Passei pela Brasileira e resisti ao café romano porque uma faixa prometia um aterrador karaoke. Segui a calçada portuguesa e entrei na Sampaio Bruno, onde havia transacções ilegais de acções quando a Bolsa disparou em vésperas da Revolução, e de moeda estrangeira quando os cravos desabrocharam.


O antes e o depois…

Quase sem querer, porque de facto não queria, cheguei aos Aliados que não via há meses. Quando lá passo de carro, prefiro fixar o autocarro à minha frente para não olhar o que me desgosta.
A calçada desapareceu e há um manto escuro de granito, um derrame de nafta que se espalha e já não espelha a luz. Recordei-me da Noite de Abril, de Sophia, e vi que uma nova praça destruiu a praça do costume.


…já sem o seu jardim...

Olhei a Menina Nua, cabisbaixa entre arames, e entrei no Guarani. Ganhei um novo ânimo, porque só nesta cidade se toma por 85 cêntimos o melhor cimbalino do Mundo ao som do piano. 


Saudei o D. Pedro que resistiu, valente, à rotação a que fora condenado. De costas voltadas, despreza as modas, repousando o olhar nas Cardosas. De esguelha, é verdade, porque, ainda inconformado com a Estação de São Bento, prefere mirar o modernismo da Vitália. Egito Gonçalves explicou que "razão teve el-rei para doar à invicta cidade o coração, mas esse posto a salvo no resguardo prateado da Lapa: ali ouve missas, concertos de órgão. Longe do corpo, nada o perturba, goza as flores das beatas, o repouso do guerreiro".

Foto Dino Gonçalves - 2017

Subi os Clérigos, vigiado pela torre, tão alta que inspirou Jorge de Sena a acreditar que com ela a solidão se pode tornar humana. Lembrei-me dos tempos de criança em que cobiçava os brinquedos do Bazar Esmeriz enquanto a minha avó fazia compras na Aveleda, onde me davam pastilhas de mentol, do Tavares Martins enfiado na sua livraria mágica.


Na velha rua, aflita, deserta e velha, sobram as lojas de vestidos de noiva, talvez porque infeliz e esquecida, se metamorfoseou numa daquelas donzelas desenganadas que passavam décadas cuidando do enxoval e esperando a chegada do prometido noivo, que nunca regressaria da viagem em busca da fortuna no Brasil. 
Aterrado com o chão de granito sarapintado das Galerias de Paris, trepei a escadaria da Praça de Lisboa, que foi feira e estacionamento antes de ser uma galeria com cafés e livrarias. Agora que o fast food morreu, mais não é que uma tampa vazia, com aba betonada.


Estátua de D. António Ferreira Gomes – escultor Arlindo Rocha - 1991

Do outro lado da praça, alguém que não apreciava o nosso querido bispo António inspirou-se no Batman para o esculpir em formato de morcego.
Atravessei a Cordoaria, mal iluminada por horríveis pimenteiros. Perdeu a má fama, mas sucumbiu ao mau gosto; a sua magia deve estar enterrada nas campas rasas que fazem a vez de bancos. Instalaram bonecos em posições duvidosas, mas esvaziou-se de gente de corpo e alma, deixando o António Nobre mais só entre os gordos plátanos que sobreviveram ao vandalismo bacoco.


...mais conhecido pelo Piolho

Apreciei as novas tílias envergonhadas plantadas às três pancadas à porta do Piolho, onde reinava grande animação, e resisti a entrar na Carlos Alberto careca que deve ao Ricardo Figueiredo não ser hoje um tanque de rega. Admirei o Art Deco dos Cunhas que ainda prometem novidades sob o seu pavão emplumado que desafia os Leões.
Na Gomes Fernandes, ao lado da neonizada Quinta do Paço, onde se comprava nata e que agora anuncia "ecléres e chantilly", trespassa-se a loja com os bustos de halterofilistas que seguravam um desaparecido tolde.


Desci a Rua de Ceuta, evitei o túnel da discórdia e cheguei, enregelado e desanimado, ao meu carro. Guiando e ouvindo Pedro Abrunhosa na rádio, pensei que a nostalgia era um mau sinal, prenúncio da meia-idade. Chegado a casa, folheei o jornal e li que, em Madrid, havia quem garantisse que se amarraria às árvores para evitar o camartelo (ainda por cima português) da modernidade. Pensei no Pedro e no Coliseu e arrependi-me de não ter ido até à estátua do Garrett, pedir-lhe coragem emprestada para ir para a rua gritar "Basta!". »

Escolhemos este belíssimo texto porque nós, que tantos anos percorremos todos estes caminhos, sentimos a mesma nostalgia e indignação.

O Porto visto por Richard Zimler – 2 vídeos
https://www.youtube.com/watch?v=wDMfhIUrRcE

segunda-feira, 23 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO XXXVI

9.36 - António Castillo de Lucas, Testemunho extraordinário de uma aluna indonésia do Erasmus

António Castillo de Lucas (1898-1972) médico e etnógrafo de Madrid


Ex libris


1951

Uma aluna da Indonésia veio fazer o Erasmus ao Porto – eis o seu extraordinário e meticuloso testemunho: Não deixe de ler pois é mesmo bom
http://bhellabhello.wordpress.com/2014/07/06/9-reasons-why-you-should-pack-your-stuffs-and-go-to-porto-now/

quarta-feira, 18 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXV

9.35 - Testemunho de François Grosrichard, O doce percurso do Rio Douro, As cheias, As maravilhas do Douro, Monumentos do Porto, Gaia, Quintas do Douro,Vila Real


Rio Douro no areinho – Jean Pillement .Sec. XVIII

VAGABONDAGE sur le DOURO, au pays du porto
François Grosrichard
ARTICLE PARU DANS L'EDITION DU 16.12.04
Une croisière sur un fleuve paisible au milieu des vignes et des chais, ponctuée d'escales racontant l'histoire du Portugal
Qu'il est doux le nom de ce long fleuve - le Douro - né dans les monts de la vieille Castille espagnole et qui va se jeter dans les eaux portugaises de l'Atlantique à Porto ! Doux et bien tranquille aujourd'hui, parce que régulé par des barrages aux dimensions impressionnantes et des écluses gigantesques, les plus hautes d'Europe, qui font l'admiration des ingénieurs en hydraulique et de tous les amoureux des voies d'eau.


Barragem de Barca d'Alva


Mais jadis, se souviennent les anciens, ses fureurs subites, c'est-à-dire ses crues, semaient la panique en provoquant des centaines de naufrages de rabelos, ces bateaux de bois élégants au gouvernail immense à bord desquels on entassait les barriques du célèbre vin de Porto pour les descendre jusqu'aux chais et magasins de la ville-port du même nom.


Vista do Monte Raso - Régua

Fleuve, vin et montagnes sont les trois mots-clés du triptyque de ceux qui veulent connaître et apprécier ce Portugal septentrional, hier encore considéré comme en retard de développement par rapport à ses voisins européens et aujourd'hui, grâce notamment aux subventions communautaires, en plein boom.


Sur près de 240 km, le Douro traverse le Portugal d'est en ouest et constitue un itinéraire initiatique varié, sauvage la plupart du temps et toujours enchanteur. L'été, la fraîcheur de l'onde et des ombres sur le rivage apportent une bienfaisante compensation aux torrides chaleurs. En automne, sur les terrasses escarpées, roussissent les dernières feuilles des vignes.


Quinta da Erva Moira no Outono

Le tourisme fluvial a trouvé là un bon terrain de chasse. Bon et tout neuf. Car on peut faire connaissance avec un pays par les livres, l'avion qui le survole, la route ou le train qui y serpentent. Mais le découvrir par la voie d'eau intérieure a quelque chose de plus subtil, plus intime, subjectif presque. Blaise Pascal disait joliment que les fleuves sont des chemins qui marchent.



Porto das 5 pontes - foto Luis Miguel Cunha -13/6/2016

A l'embouchure du Douro, Porto et sa topographie tourmentée se débattent comme toutes les métropoles entre urbanisation rapide et sauvage et souci de préserver un riche passé. Le classement en 1996 de la ville au Patrimoine mondial de l'humanité par l'Unesco et sa nomination en 2001 comme capitale européenne de la culture avivent la curiosité des touristes et rehaussent son prestige. Il est vrai que, autant au bord du fleuve que dans la ville haute, aux alentours de la cathédrale et de la gare centrale, se lit dans les ruelles sinueuses l'histoire d'une nation qui fut jadis à l'avant-garde des plus glorieuses conquêtes ultramarines.
Mais la deuxième ville du pays offre aussi un spectacle décevant en raison des travaux du métro qui l'éventrent et de l'abandon, par leurs propriétaires privés, de demeures aux façades encore couvertes de faïences aux tons blancs et bleus. Ces maisons qui ont abrité l'opulence sont aujourd'hui délabrées, aveugles, béantes, et donnent une allure pitoyable, voire repoussante, à certains quartiers, ce qui a conduit la municipalité, soutenue par un programme financier européen, à prendre les choses (c'est-à-dire la restauration immobilière) énergiquement en main.


UNE QUARANTAINE DE CÉPAGES

Le fleuve, lui, n'a pas encore trop subi l'outrage du temps ou l'impéritie des hommes. Sur la rive gauche, à Gaïa, rivale de Porto, les chais des grandes compagnies de vin de Porto - les majors rachetant progressivement les sociétés plus petites - constituent une halte obligée dans tout programme touristique.


Se faire raconter l'histoire autant anglaise que portugaise du divin breuvage et se laisser initier aux subtils distinguos entre le porto blanc fruité et les vintages de trente ou quarante ans, dont les bouteilles, une fois ouvertes, doivent être bues sans trop attendre, procure autant d'émotions que la dégustation elle-même. Les cépages ? On en dénombre une quarantaine....


Sé Catedral – Altar de Prata

Et c'est ainsi, la tête enjouée et les papilles égayées, qu'on ira visiter la cathédrale, commencée au XIIe siècle, qui mêle de nombreux styles et abrite une chapelle du Saint-Sacrement richement et lourdement ornée de boiseries de palissandre et de panneaux d'argent et d'or brésiliens.


Le palais de la Bourse, où est installée depuis 1834 la Chambre de commerce, mérite aussi le détour. Non seulement parce que la salle du Tribunal, superbe, ne sert plus pour des audiences de justice mais pour les intronisations des membres de la confrérie des vins de porto,mais aussi parce que le « clou » des salles est le salon arabe, tout de stuc, inspiré de l'Alhambra de Grenade.


Cinco pontes do Porto – foto Luis Miguel Cunha – Junho de 2016

Mais revenons au fleuve et sur le fleuve, en en remontant le cours. Le Fernao-de-Magalhaes, paquebot fluvial blanc et vert, armé par CroisiEurope, glisse sous les six ponts de la ville, celui que construisit au siècle dernier Gustave Eiffel et les ouvrages modernes en béton. Les rives sont bien aménagées, avec marinas, clubs sportifs, aires de baignade et parcours de kayaks. Le cours d'eau est large, docile, et les villas cossues, blotties dans les pinèdes, montrent que la bourgeoisie de Porto ne dédaigne pas ces lieux de villégiature. « Ce qui se développe le plus, c'est le jet ski aux beaux jours » , note le commandant du navire, Jean-Marc Portebois, galons aux épaulettes.


Quinta do Vesúvio

MAISONS DE MAÎTRE
Plus on remonte vers l'amont, plus les rives deviennent sauvages. Les forêts d'eucalyptus remplacent les résineux. Les hérons ne sont pas effarouchés. Chaque village a aménagé son estacade, son ponton, ses quais revêtus de petits pavés de granit. Le fleuve longe la voie ferrée et la route. Parfois, le chenal se rétrécit à ce point dans les gorges qu'on croit l'échouage inévitable. D'anciens caboteurs maritimes ont été transformés en dragues pour entretenir le chenal.
Sur les hauteurs, au milieu des domaines viticoles, les maisons de maître, blanches aux toits de tuiles rouges - les quintas -, veillent sur la vallée et les alentours comme le feraient ailleurs des châteaux forts postés aux endroits stratégiques. Tout part du porto et du Douro et tout y retourne. Un sommelier rapporte ce dicton : « Dieu créa la Terre et l'homme le Douro. »
Jadis utilisé pour le transport de marchandises, notamment le granit, le Douro n'a plus qu'une vocation touristique. Tous les villages riverains se préparent à recueillir sa manne. « Les chiffres explosent, explique Francisco Lopès, administrateur délégué de l'Institut portuaire et des transports, avec 63 000 touristes sur le fleuve en 1997 et 168 000 en 2003. »


Quinta de Mateus

L'autocar est un allié précieux du bateau. Des routes sinueuses - mais bientôt une autoroute superbe en encorbellement - conduisent à Sabrosa, conglomérat de demeures seigneuriales du XVe siècle où naquit, en 1480, Magellan. Et voilà Vila Real, où prolifèrent les balcons et portails en ferronnerie d'art, et, un peu à l'écart, le manoir de Mateus, exemple achevé de l'architecture baroque à l'intérieur duquel on pourra voir, stupéfait, une collection de reliques religieuses « empruntées » il y a longtemps au Vatican et jamais restituées...
Au loin retentit la corne du Fernao - de-Magalhaes, qui rappelle à l'ordre les touristes retardataires. Il ne faut pas traîner, car la navigation sur le Douro n'est pas (encore) autorisée la nuit. Et les portes de l'écluse de Carapattelo - qui permettent d'avaler un dénivelé de 36 mètres - ferment à la tombée du jour.
François Grosrichard

quarta-feira, 11 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXIV

9.34 - Memórias de José Rentes de Carvalho II, Praça Almeida Garrett, Estação de S. Bento, Rua das Flores, Praça Almeida Garrett, Torre dos Clérigos, Fontaínhas, Noite de S. João


Rua de Pelames – 1936 – reparem no estado degradado.

Pela Rua dos Pelames desce-se para o centro e para a estação, que primeiro foi convento. Para mim lugar magnético. 


Encarcerado atrás de grades invisíveis, tantas vezes lá sonhei viagens que, finalmente, numa noite má de Inverno, o destino compadecido abriu a prisão e deixou que eu tomasse o comboio que dali me levaria para Paris e para o mundo.


Entro lá agora com o sentimento de quem penetra numa igreja. Os painéis de azulejo que revestem as paredes até ao tecto devolvem-me aos anos de menino. Vejo-me a caminhar para o comboio atrás de meus pais. O bagageiro empurra as nossas malas para dentro do compartimento. A máquina apita.


Volto a mim e desço para a Rua das Flores. Durante três séculos foi a grande rua da cidade. Moravam nela os ricos, era ponto de passagem obrigatório para as procissões.
Desfilavam nela também os condenados que iam para as forcas à beira-rio. Mas por volta dos anos 50 começou a definhar. Das ourivesarias, de que recordo mais de vinte, resta uma na primeira travessa.


Meto para o Largo dos Loios e em vão procuro as livrarias que fizeram o encanto dos meus tempos de estudante.
Desapareceram todas. Em vez delas estão lá agora sapatarias e lojas de electrodomésticos, lojas de artigos em segunda mão. Nalgumas portas, comerciantes indianos tristonhos, as suas bocas marcadas por aquele ríctus que involuntariamente leva a pensar em Naipaul.
Rua dos Caldeireiros. Um dia que lhe propus irmos jantar à Adega de Vila Meã, no nr. 62, um amigo encarou-me incrédulo e horrorizado. Provavelmente porque vivia longe, eu não me dava conta de como na cidade tudo tinha mudado. Gente de juízo nem mesmo de dia se arriscava a passar por aqueles lados. Querer ir lá de noite? Fora de questão. E contando pelos dedos: ele eram os drogados, os carteiristas, a juventude desencaminhada, os chulos, os bêbedos, os mendigos...
Fomos comer a outro lado, mas não lhe posso dar razão. A Rua dos Caldeireiros, como as todas as que sobem para a Torre dos Clérigos e a universidade, são íngremes, estreitas e modestas. A uns parecerão perigosas. Outros, como eu, acham romântica aquela escassez de luz, que de dia as transforma em vielas de souk e de noite - os lampiões são poucos, fracos e espaçados - as devolve ao tempo antigo.


À esquerda a entrada do Mercado do Anjo

Para mim é obrigatório: acabada de subir a Rua dos Caldeireiros dou a volta à torre que Nicola Nasoni construiu entre 1732 e 1763 e onde, orgulhoso da sua obra-prima, pediu que o enterrassem.
Caminho depois em volta do edifício quadrangular e severo da universidade. Regresso pela Rua das Carmelitas.
Paro junto da escadaria da igreja e sorrio à lembrança do que me faz deter ali, a do dia em que escapei à morte.


A rua desce com uma inclinação invulgar e, talvez por ser perigosa, deixaram de passar nela os eléctricos que nos traziam do liceu. Nesse tempo tínhamos quatorze, quinze anos e, para desespero do revisor, mal o eléctrico na descida ganhava velocidade saltávamos dele para o passeio como em voo. Era arriscado, dava cachet, as raparigas gostavam de ver e batiam palmas.
Dessa vez era eu o último e o revisor, irritado, tinha-me de olho, não se deixava iludir com a indiferença do meu modo. Ao ver-me pronto a saltar agarrou-me com força pelo braço, eu puxei com força maior, desprendi-me, escapei-lhe. Mas em vez do elegante voo que tinha preparado rodopiei pelo ar. Vi a rua e as pessoas de cabeça para baixo, ouvi gritos, o chiar dos travões dos carros,


e aterrando sobre a barriga deslisei do passeio para dentro da farmácia Vitália - hoje ainda no mesmo lugar, no número trinta e quatro da Praça da Liberdade. Grande sorte a minha, porque era dia de grande calor e as portas estavam abertas de par em par, caso contrário teria esfacelado os miolos contra elas e não estaria agora a recordar o caso.


Atravesso o centro e vou de remanso até à Alameda das Fontainhas. Por toda a parte cartazes a anunciar festividades.
Mas o Porto cosmopolita, metrópole do futuro, ajusta-se mal ao meu Porto que, mais do que realidades, é feito de memórias e sonhos, de miragens, de ilusões que o tempo não mata.
Debruçado no muro da alameda enfrento o meu Douro e as duas pontes de ferro. Ignoro as outras, elegantes, feitas de betão.


Reponho no lugar donde desapareceram, as escadas que nos Guindais iam da rua para o rio e serviam de atraque aos rabelos. Em vez de pipas de vinho, no mês de Junho vinham carregados de borregos, que eram mortos mesmo ali e se comiam na véspera de São João.



E de súbito faz-se escuro, há um mar de gente à minha volta, foguetes rebentam em milhares de estrelas coloridas.
A aragem morna traz fragmentos das marchas que as bandas de música tocam pelas ruas. Há gente a dançar. Para o céu sobem grandes balões de papel de seda, com mechas que os enchem de ar quente e lhes avivam o colorido.
Se a vida não obrigasse, nunca eu quereria acordar dos sonhos que a magia do Porto aviva em mim”.

Iluminações de Natal e fotos animadas do Porto 2014 – vídeo de Paulo Ferreira
http://vimeo.com/115345858

sábado, 7 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXIII

9.33 - Memórias de José Rentes de Carvalho I, Os 3 Rios Douro, O perigoso Rio Douro antes das barragens, O Rio Douro da Ponte Maria Pia ao mar, O "Duque", As ruas estreitas da Ribeira, Fotos antigas



O escritor José Rentes de Carvalho- (V. N. da Gaia - 1930) conta as suas memórias de jovem no seu livro Tempo Contado:
 
“Para que o Porto avive em mim a magia com que me enfeitiçou ao nascer, basta a lembrança de umas quantas ruas e do seu rio. Curiosamente, com as ilusões e os sonhos que se têm na infância e ficam para o resto da vida, o nome de Douro uso-o eu não somente para um, mas para três rios distintos.


Carregamento de vinho do Porto no cais de Gaia - 1910

O primeiro, conheci-o nas lições de Geografia: nasce na Sierra de Urbión, atravessa a Espanha, onde lhe chamam Duero, atravessa Portugal e desaparece no Atlântico. Abstracto, impessoal, não vive, não corre, é simples linha azul nos mapas.


Cachão da valeira - foto de Emílio Biel


Barco Rabelo à sirga


O segundo Douro é o que se avistava do comboio que nas férias me levava do Porto para a nossa aldeia transmontana.
Ao contrário d’agora, com as barragens que o acalmaram e puseram quase ao nível dos carris, o rio desse tempo remoinhava furioso por entre cachões. A sua água espumava e, vistos do comboio, os rabelos carregados de pipas de vinho, que atracados aos cais da cidade me impressionavam pelo tamanho, pareciam naves de brinquedo a lutar contra a corrente no fundo das ravinas.
Esse era o rio majestoso, de que se contavam lendas e onde ocorriam tragédias. As suas margens eram uma espectacular paisagem de rochedos, colossais muralhas de xisto, arbustos ressequidos, aldeias nas encostas, vinhedos que se estendiam a perder de vista. Aqui e além uma vela branca, barcos varados nos areais.
Gente que parava de trabalhar e acenava alegremente ao comboio.
Pássaros em voo lento, desenhado a preto no azul do céu.
No tempo das cheias os rabelos perdiam por vezes o governo e iam despedaçar-se contra os penedos. Depois, inchados e roxos, os cadáveres dos náufragos apareciam defronte do Porto, na Ribeira, parados pela força da maré cheia, ou apertados entre as embarcações.


De todos os três o terceiro Douro é o que me é mais querido. E tão familiar que, com a mesma ingenuidade com que nos apossamos das paisagens da nossa infância, muitas vezes julguei que fosse só meu.
O meu Douro tem pouco a ver com a linha azul que nos mapas atravessa a Espanha e Portugal, e do segundo Douro somente partilha as águas. No que respeita o comprimento, a esse mal se lhe pode chamar rio: começa junto da ponte do caminho-de-ferro que Eiffel construiu em 1876, passa sob a ponte de D. Luís I, faz duas curvas preguiçosas, alarga-se um momento e, como que exausto pelos cinco quilómetros que percorreu, entra no mar.


Foz do Douro visto do Palácio de Cristal



Os anos de menino passaram, a magia ficou. Nesse meu rio só eu os vejo, mas os veleiros de quatro mastros, embandeirados e pintados de branco, estão de novo atracados ao Muro dos Bacalhoeiros, à espera que o bispo os venha abençoar para que o mar da Groenlândia seja calmo e lhes dê boa pesca. Vejo-os quando regressam, sujos, ferrugentos, o velame esgarçado, tão carregados que mal se lhes distingue a linha de água.
Guardo os postais dos anos 30, que mostram o rio atulhado de cargueiros, o fumo branco a escapar-se-lhes das chaminés e dos guindastes, que nesse tempo ainda eram a vapor.



A descarga do sal era feita por mulheres –.foto de 1939

Noutros estão as filas de carrejões que faziam a descarga do sal e do carvão. Vão de cesto à cabeça a correr pela prancha que junta o navio ao cais. Vejo a prancha balançar. Oiço os risos e os gritos. Vejo os botes que pescam a meio do rio e os outros que cobram dez tostões pela passagem.
Mas não atravesso ainda, deixo-me ficar em Gaia, no largo onde nasci.


Em 1849 vivia aqui Frederick William Flower.
Escocês, comerciante de vinhos, fotógrafo pioneiro. Tal como depois a mim, a ele também o panorama deve ter parecido mágico. Provam-no as suas fotografias.


Ponte D. Maria II (pênsil) – foto Frederick Flower

Ajudado por elas viajo no tempo. Passo pelos estaleiros, que depois fariam o encanto da minha infância, e atravesso o rio sobre a ponte pênsil. Desta só restam na margem direita duas das quatro colunas em que a ponte se apoiava. Continuo pela Ribeira, passo pelo baixo-relevo que recorda o desastre da ponte das barcas, em 1809, em que desapareceram no rio milhares de portuenses que fugiam das tropas de Napoleão.


Ali ao lado faço uma reverência à placa do "Duque". Quem não sabe, estranhará, e é preciso explicar. Como toda a gente, também eu conheci o "Duque", que morreu quase centenário em 1997. Lá está a placa para recordação. Diocleciano Monteiro.
Cauteleiro, barqueiro, por alcunha o Duque, devido à nobreza do seu porte. A fama veio-lhe aos onze anos, quando se atirou ao rio para salvar um infeliz que se afogava. E como se o destino o tivesse marcado, ficou salvador de vidas e "pescador" de afogados e suicidas para o resto da vida. Centenas deles, dizem. "Houve um ano em que se atiraram doze da ponte abaixo."


Logo detrás da Ribeira, e subindo pela encosta até à Sé, fica o emaranhado de ruas e vielas que em tempos imemoriais foram as primeiras da cidade. Sombrias, estreitas, misteriosas. Com uma vida pública que sofre a luz do dia, e outra secreta, nocturna, de vultos fugidios. Aí ficavam o Royal e o Guarany, os cafés onde me tornei homem, com o primeiro cigarro, a primeira cerveja, o primeiro susto, que nesse tempo se exorcizava com orações e permanganato.