quarta-feira, 11 de abril de 2018

TESTEMUNHOS E MEMÓRIAS SOBRE O PORTO - XXXIV

9.34 - Memórias de José Rentes de Carvalho II, Praça Almeida Garrett, Estação de S. Bento, Rua das Flores, Praça Almeida Garrett, Torre dos Clérigos, Fontaínhas, Noite de S. João


Rua de Pelames – 1936 – reparem no estado degradado.

Pela Rua dos Pelames desce-se para o centro e para a estação, que primeiro foi convento. Para mim lugar magnético. 


Encarcerado atrás de grades invisíveis, tantas vezes lá sonhei viagens que, finalmente, numa noite má de Inverno, o destino compadecido abriu a prisão e deixou que eu tomasse o comboio que dali me levaria para Paris e para o mundo.


Entro lá agora com o sentimento de quem penetra numa igreja. Os painéis de azulejo que revestem as paredes até ao tecto devolvem-me aos anos de menino. Vejo-me a caminhar para o comboio atrás de meus pais. O bagageiro empurra as nossas malas para dentro do compartimento. A máquina apita.


Volto a mim e desço para a Rua das Flores. Durante três séculos foi a grande rua da cidade. Moravam nela os ricos, era ponto de passagem obrigatório para as procissões.
Desfilavam nela também os condenados que iam para as forcas à beira-rio. Mas por volta dos anos 50 começou a definhar. Das ourivesarias, de que recordo mais de vinte, resta uma na primeira travessa.


Meto para o Largo dos Loios e em vão procuro as livrarias que fizeram o encanto dos meus tempos de estudante.
Desapareceram todas. Em vez delas estão lá agora sapatarias e lojas de electrodomésticos, lojas de artigos em segunda mão. Nalgumas portas, comerciantes indianos tristonhos, as suas bocas marcadas por aquele ríctus que involuntariamente leva a pensar em Naipaul.
Rua dos Caldeireiros. Um dia que lhe propus irmos jantar à Adega de Vila Meã, no nr. 62, um amigo encarou-me incrédulo e horrorizado. Provavelmente porque vivia longe, eu não me dava conta de como na cidade tudo tinha mudado. Gente de juízo nem mesmo de dia se arriscava a passar por aqueles lados. Querer ir lá de noite? Fora de questão. E contando pelos dedos: ele eram os drogados, os carteiristas, a juventude desencaminhada, os chulos, os bêbedos, os mendigos...
Fomos comer a outro lado, mas não lhe posso dar razão. A Rua dos Caldeireiros, como as todas as que sobem para a Torre dos Clérigos e a universidade, são íngremes, estreitas e modestas. A uns parecerão perigosas. Outros, como eu, acham romântica aquela escassez de luz, que de dia as transforma em vielas de souk e de noite - os lampiões são poucos, fracos e espaçados - as devolve ao tempo antigo.


À esquerda a entrada do Mercado do Anjo

Para mim é obrigatório: acabada de subir a Rua dos Caldeireiros dou a volta à torre que Nicola Nasoni construiu entre 1732 e 1763 e onde, orgulhoso da sua obra-prima, pediu que o enterrassem.
Caminho depois em volta do edifício quadrangular e severo da universidade. Regresso pela Rua das Carmelitas.
Paro junto da escadaria da igreja e sorrio à lembrança do que me faz deter ali, a do dia em que escapei à morte.


A rua desce com uma inclinação invulgar e, talvez por ser perigosa, deixaram de passar nela os eléctricos que nos traziam do liceu. Nesse tempo tínhamos quatorze, quinze anos e, para desespero do revisor, mal o eléctrico na descida ganhava velocidade saltávamos dele para o passeio como em voo. Era arriscado, dava cachet, as raparigas gostavam de ver e batiam palmas.
Dessa vez era eu o último e o revisor, irritado, tinha-me de olho, não se deixava iludir com a indiferença do meu modo. Ao ver-me pronto a saltar agarrou-me com força pelo braço, eu puxei com força maior, desprendi-me, escapei-lhe. Mas em vez do elegante voo que tinha preparado rodopiei pelo ar. Vi a rua e as pessoas de cabeça para baixo, ouvi gritos, o chiar dos travões dos carros,


e aterrando sobre a barriga deslisei do passeio para dentro da farmácia Vitália - hoje ainda no mesmo lugar, no número trinta e quatro da Praça da Liberdade. Grande sorte a minha, porque era dia de grande calor e as portas estavam abertas de par em par, caso contrário teria esfacelado os miolos contra elas e não estaria agora a recordar o caso.


Atravesso o centro e vou de remanso até à Alameda das Fontainhas. Por toda a parte cartazes a anunciar festividades.
Mas o Porto cosmopolita, metrópole do futuro, ajusta-se mal ao meu Porto que, mais do que realidades, é feito de memórias e sonhos, de miragens, de ilusões que o tempo não mata.
Debruçado no muro da alameda enfrento o meu Douro e as duas pontes de ferro. Ignoro as outras, elegantes, feitas de betão.


Reponho no lugar donde desapareceram, as escadas que nos Guindais iam da rua para o rio e serviam de atraque aos rabelos. Em vez de pipas de vinho, no mês de Junho vinham carregados de borregos, que eram mortos mesmo ali e se comiam na véspera de São João.



E de súbito faz-se escuro, há um mar de gente à minha volta, foguetes rebentam em milhares de estrelas coloridas.
A aragem morna traz fragmentos das marchas que as bandas de música tocam pelas ruas. Há gente a dançar. Para o céu sobem grandes balões de papel de seda, com mechas que os enchem de ar quente e lhes avivam o colorido.
Se a vida não obrigasse, nunca eu quereria acordar dos sonhos que a magia do Porto aviva em mim”.

Iluminações de Natal e fotos animadas do Porto 2014 – vídeo de Paulo Ferreira
http://vimeo.com/115345858

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